sábado, 30 de abril de 2011

Poema - André Breton.


Tenho na minha frente a fada de sal
cuja túnica recamada de cordeiros
desce até ao mar
Cujo véu pregueado
de queda em queda ilumina toda a montanha.
Ela brilha ao sol como um lustro de água iridiscente
E os pequenos oleiros da noite serviram-se das suas
unhas onde a lua não se reflecte
para moldar o serviço de café da beladona.
 
O tempo enrodilha-se miraculosamente detrás dos seus
sapatos de estrelas de neve
ao longo dum rasto perdido nas carícias
de dois arminhos.
 
Os perigos anteriores foram ricamente repartidos
e mal extintos os carvões no abrunheiro bravo das sebes
pela serpente coral que sem custo passa
por um delgado
filete de sangue seco
na lareira profunda
sempre sempre esplendidamente negra
Esta lareira onde aprendi a ver
e sobre a qual dança sem cessar
o crepe das costas das primaveras
Aquele que é necessário lançar muito alto para dourar
a mulher em cujos cabelos encontro
o sabor que perdera
O crepe mágico o sinete voador
do amor que é nosso.

Pintura: Salvador Dalí.

Nem olhos viram, nem ouvidos
ouviram, nem jamais penetrou
em coração humano o que Deus
tem preparado para aqueles
que o amam.

1º Coríntios 2:9

Deixa fluir esse fogo, amor.
Vem!
Abre tuas asas, gaivota
E me dá um bloco branco
Pra eu reinventar
A vida!

(Carlos Maia)
Março/84.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Eu sei, mas não devia - Marina Colasanti


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Procura-se
A aurora desperta pelo azul do mar,
A quietude outonal que rasga o dia,
a vida que ressurge rara após noite escura.

Procura-se
a esperança que saiu voando sem rumo,
uma alma alada como pássaro,
que desapareceu entre o céu e o mar.

Procura-se
sonhos pássaros perdidos na névoa tardia,
ventos leves, leves como o pensamento.

Procura-se
uma chance, uma sorte, uma nova saída,
uma ilha, um pouco de paisagem,
um verso capaz de descrever o instante.

Sônia Schmorantz
 
Fonte: http://interludioemflor.blogspot.com

quarta-feira, 27 de abril de 2011


Ter que atravessar o vale crestado
até chegar ao campo das amapolas
mas até lá alguma coisa se partiu
dentro de mim
como estilhaços de cristais
tinindo na solidão atroz
recuperar o fio da meada
para não enlouquecer

Entardecer
nuvens de chumbo
os dias são todos iguais
de dia estudo
de noite espalho os murais

(Carlos Maia)

Pintura: Salvador Dalí.

ao longo do tempo
preparamos tempestades e fugas
como festejando maturidade e consciência
ao longo do tempo
suportamos ofensas, esquecimentos e partidas
como
se à nós
fosse facultado o direito
da nossa própria desconstrução
ao longo do tempo
perdemos a razão
embrutecidos como uma pedra
caminhamos ao redor de uma mesma montanha
disfarçados por uma armadura
frágil e falsa
ao longo do tempo
acompanhamos como presos
a vida
como só assim
pudéssemos vê-la
ao longo do tempo
partimos
e já não podemos sentir
o gosto alegre da manhã
e da face de uma  lua que reina.
 
Cgurgel
 

Poema Dialético - Murilo Mendes


É preciso conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.

terça-feira, 26 de abril de 2011

segunda-feira, 25 de abril de 2011

De um comentário de Arsênio Meira - Obrigado Arsênio!


Uma mulher na varanda
Se debruça sobre o mar
Contempla as gaivotas gêmeas
Espera uma carta de amor

Brilha o cemitério aéreo
As nuvens jogam boxe

Passam meninas cantando

Não sabem que sou poeta
E o amor que existe em mim.

(Murilo Mendes)

domingo, 24 de abril de 2011


Onde pulsa o amor
Aí há paz
Pois o amor é o cumprimento
de toda a lei
Quem ama não mata
Quem ama não adultera
Quem ama não rouba
Quem ama não levanta falso testemunho

 E quando Jesus diz:
Amai-vos uns aos outros,
que padrão de amor é esse
que Ele propõe que nos amemos?
O padrão é muito alto
O padrão é: "Como eu vos amei"

Será que a gente está preparado
para amar o nosso próximo
como Cristo nos amou?

(Carlos Maia)

sábado, 23 de abril de 2011

Análise - Fernando Pessoa.


Tão abstrata é a idéia do teu ser
 Que me vem de te olhar, que, ao entreter 
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista, 
E nada fica em meu olhar, e dista 
Teu corpo do meu ver tão longemente, 
E a idéia do teu ser fica tão rente 
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me 
Sabendo que tu és, que, só por ter-me 
Consciente de ti, nem a mim sinto. 
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto 
A ilusão da sensação, e sonho, 
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo 
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho 
Do interior crepúsculo tristonho 
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Para os Saudosistas: George Harrison



Eu não entendo a língua desse povo, mas a energia que esse vídeo passou pra mim foi muito boa!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Afinal - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras.
 Sentir tudo excessivamente,
 Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas 
E toda a realidade é um excesso, uma violência, 
Uma alucinação extraordinariamente nítida 
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas, 
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas 
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. 
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, 
Quanto mais personalidade eu tiver, 
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, 
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, 
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, 
Estiver, sentir, viver, for, 
Mais possuirei a existência total do universo, 
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora. 
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, 
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo, 
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco. 
Cada alma é uma escada para Deus, 
Cada alma é um corredor-Universo para Deus, 
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo 
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno. 
Sursum corda!  Erguei as almas!
Toda a Matéria é Espírito, 
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos 
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho 
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
 Sursum corda!  Na noite acordo, o silêncio é grande, 
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam 
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos 
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra. 
Sursum corda!  Acordo na noite e sinto-me diverso. 
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume 
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso, 
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça. 
Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço 
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva! 
Mãe verde e florida todos os anos recente, 
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal, 
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis 
Num rito anterior a todas as significações, 
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales! 
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões, 
Grande voz acordando em cataratas e mares,
 Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança, 
Em cio de vegetação e florescência rompendo 
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna! 
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados, 
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
 Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
 Que perturba as próprias estações e confunde
 Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!
 Sursum corda!  Reparo para ti e todo eu sou um hino!
 Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
 Volteia serpenteando, ficando como um anel 
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
 Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
 Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
 Meu coração a ti aberto!
 Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
 Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
 Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,
 Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
 Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
 A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une 
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
 Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
 Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
 Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
 Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.
 Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
 Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
 No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
 Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos 
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.
 Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
 Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
 De chamas explosivas buscando Deus e queimando
 A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.
 Sou uma grande máquina movida por grandes correias
 De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
 O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
 E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...
 Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
 Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
 Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
 Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
 Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.
 Dentro de mim estão presos e atados ao chao
 Todos os movimentos que compõem o universo,
 A fúria minuciosa e dos átomos,
 A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
 A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
 A chuva com pedras atiradas de catapultas
 De enormes exércitos de anões escondidos no céu.
 Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
 De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
 Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
 Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
 Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
 Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, 
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, 
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,     Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

A aranha do meu destino - Fernando Pessoa.


A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.

Não soube o que era em menino,

Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada

Apanhou-me o querer ir...

Sou uma vida baloiçada

Na consciência de existir.

A aranha da minha sorte

Faz teia de muro a muro...

Sou  presa do meu suporte.

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.

(Fernando Pessoa)

Entre o sossego e o arvoredo - Fernando Pessoa.


ENTRE o sossego e o arvoredo, 
Entre a clareira e a solidão, 
Meu devaneio passa o medo 
Levando-me a alma pela mão. 
É tarde já, e ainda é cedo. 
[...] 

quinta-feira, 21 de abril de 2011


No coração humano, 
os prazeres não mantém entre si as relações
que os desgostos aí conservam;
as novas alegrias não fazem renascer as antigas,
mas as dores recentes reverdecem as outras.

(Pierre Ronsard)

Considerações de Aninha - Cora Coralina.


Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Guardador de Rebanhos - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


  O meu olhar é nítido como um girassol.
     Tenho o costume de andar pelas estradas

     Olhando para a direita e para a esquerda,

     E de, vez em quando olhando para trás...

     E o que vejo a cada momento

     É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

     E eu sei dar por isso muito bem...

     Sei ter o pasmo essencial

     Que tem uma criança se, ao nascer,

     Reparasse que nascera deveras...

     Sinto-me nascido a cada momento

     Para a eterna novidade do Mundo...
     Creio no mundo como num malmequer,
     Porque o vejo.  Mas não penso nele

     Porque pensar é não compreender ...
     O Mundo não se fez para pensarmos nele
     (Pensar é estar doente dos olhos)

     Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
     Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
     Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

     Mas porque a amo, e amo-a por isso,

     Porque quem ama nunca sabe o que ama

     Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

     Amar é a eterna inocência,

     E a única inocência não pensar...