sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O mau samaritano - Murilo Mendes.

Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar - que eu recusei.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Haver - Vinícius de Moraes.

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

15/04/62

domingo, 10 de janeiro de 2010

O Profeta - Khalil Gibran.

E um eremita, que visitava a cidade uma vez por ano,
veio à frente e disse: Fala-nos do Prazer.
E ele respondeu, dizendo:
O prazer é uma canção de liberdade,
Mas não é a liberdade.
É o florescer dos vossos desejos,
Mas não é o seu fruto.
É uma profundeza que atinge uma altura,
Mas não é o profundo nem o alto.
É o que está na gaiola que alça seu vôo,
Mas não é o espaço contido.

Sim, em verdade, o prazer é uma canção
de liberdade.
E como gostaria que a cantásseis com todo o
vosso coração; mas não gostaria que perdêsseis
vossos corações na canção.

Alguns de vossos jovens buscam o prazer como
se ele fosse tudo, e são julgados e reprimidos.
Eu não os julgaria ou reprimiria.
Eu faria com que buscassem.
Pois eles encontrarão o prazer, mas não
apenas ele;
Sete são suas irmãs, e a mais insignificante
é mais bonita que o prazer.
Já não ouvistes falar do homem que escavava
em busca de raízes e encontrou um tesouro?

E alguns de vossos anciãos lembram-se dos
prazeres com arrependimento, como se fossem
erros cometidos durante a bebedeira.
Mas arrepender-se é obscurecer a mente,
e não torná-la casta.
Devem lembrar-se de seus prazeres com gratidão,
como da colheita de um verão.
Porém, se o arrependimento os conforta,
deixai que sejam confortados.

E há aqueles entre vós que não são jovens para
buscar, nem velhos para lembrar;
E, em seu medo de buscar e de lembrar-se,
evitam todos o prazeres, temendo negligenciar
o espírito ou ofendê-lo.
Mas mesmo evitar é seu prazer.
E assim eles também encontram um tesouro,
apesar de cavarem buscando raízes,
com suas mãos trêmulas.
Mas, falai-me, quem é aquele que pode
ofender o espírito?
O rouxinol ofende o silêncio da noite,
ou o vaga-lume, as estrelas?
E vossa chama ou vossa fumaça,
sobrecarregam o vento?
Achais vós que o espírito é um lago parado
que podeis perturbar com uma vara?
Muitas vezes, ao negar-vos prazer, o que fazeis
é guardar o desejo nos recessos do vosso ser.
Quem sabe se o que parece estar esquecido
hoje espera pelo amanhã?
Mesmo vosso corpo conhece sua herança,
e sua verdadeira necessidade e vontade
não serão enganadas.
E vossos corpos são a harpa de vossas almas,
E está em vós fazer com que sua música
seja doce ou que emita sons
confusos.

E agora perguntais em vossos corações:
"Como distinguiremos o que é bom no prazer
do que não é bom?
Ide aos vossos campos e aos vossos jardins,
e aprendereis que é o prazer da abelha
colher mel da flor,
Mas que também é o prazer da flor
dar mel à abelha.
Pois para a abelha, a flor é a fonte da vida,
E para a flor,
a abelha é o mensageiro do amor,
E para ambas, abelha e flor, o dar e o receber
do prazer são uma necessidade e
um êxtase.

Povo de Orfalese, sede, em seus prazeres,
como as flores e as abelhas.

(pgs. 89-93)
"As estantes dos livros que não escrevemos assim como as dos livros que
não lemos, estendem-se pela escuridão do espaço remoto da biblioteca
universal. Estamos sempre no começo do começo da letra A.



(...) É verdade que às vezes o MUNDO DA PÁGINA passa para o nosso
inconsciente imaginaire -- nosso vocabulário cotidiano de imagens -
e então vagamos a esmo naquelas paisagens ficcionais, perdidos de
admiração, como Dom Quixote. Mas, na maior parte do tempo, pisamos
em terra firme. Sabemos que estamos lendo, mesmo quando suspendemos
a descrença; sabemos porque lemos mesmo quando não sabemos como,
mantendo em nossa mente, a um só tempo, o texto ilusivo e o ato de ler.
Lemos para descobrir o final, pelo prazer da história, não pelo prazer da
leitura em si. Lemos buscando, como rastreadores, esquecidos de onde
estamos. Lemos distraidamente, pulando páginas.
Lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, paixao, inveja,
anelo. Lemos em lufadas de súbito prazer, sem saber o que provocou esse prazer.
O que é no fim das contas essa emoção?
Que poder têm as grande obras de arte sobre minha vida para fazer
com que eu me sinta tão contente?
Não sabemos: lemos ignorantemente.
Lemos em movimentos longos, lentos, como que pairando no espaço,
sem peso. Lemos cheios de preconceitos, com malignidade.
Lemos generosamente, arranjando desculpas para o texto,
preenchendo lacunas, corrigindo erros. E às vezes, quando as estrelas são
favoráveis, lemos de um único fôlego, com um arrepio,
como se alguém ou algo tivesse 'caminhando sobre nosso túmulo',
como se uma memória tivesse subitamente sido resgatada de um lugar
no fundo de nós mesmos - o reconhecimento de algo que nunca soubemos
que estava lá, ou de algo que sentimos vagamente,
como um bruxuleio ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica ergue-se e
instala-se em nós sem que possamos ver o que é, deixando-nos mais
velhos e sábios. (...) Não escolhemos os livros em vez da vida lá fora.
Estamos tentando persistir contra as adversidades óbvias;
estamos afirmando um direito comum de perguntar;
estamos tentando encontrar uma vez mais - no reconhecimento surpreendente
que a leitura às vezes concede -- uma compreensão."

Alberto Manguel n'Uma História da Leitura (adaptado)
"Existe uma coisa que eu posso fazer,
e estou melhorando nisso também,
o que me faz sentir mais uma artista do que
uma perdedora, cara, que era exatamente o que
eu pensava. Simplesmente aconteceu a combinação
das coisas certas na hora certa. Mas agora estou
aprendendo, e esse é meu trabalho,
aprender para melhorar, e estou melhorando,
o que me faz sentir bem.
Todo mundo pode fazer uma coisa por algum
tempo, mas as pessoas não estão interessadas no
que os outros conseguem fazer,
passam por você, acreditando que é um perdedor,
mas em outro tempo e lugar elas podem vir a você,
o que não significa que você é melhor do que
qualquer um.
Portanto, algumas pessoas nem tentam.
Quero dizer, sempre tem alguém que está tentando
de verdade ser justo, que trabalham mesmo,
são artistas, em grupos artísticos eles tentam
para valer.
Mas eu apenas tive sorte, e sei como tive sorte,
porque já estive lá no fundo do poço.
E usava as mesmas contas, e o mesmo estilo
"Oi, rapazes" para poder transar.

Não me diga que sou uma estrela, cara."

(Janis Joplin - por ela mesma -
Editora Martin Claret)
"Vivo para o momento das apresentações,
cheia de emoção e excitação,
como esperando por alguém a vida toda."
(Janis Joplin)

Deus no Mundo - Czeslaw Milosz.

Quando eu morrer, verei o avesso do mundo.
O outro lado, além do pássaro, da montanha, do poente.
O significado verdadeiro, pronto para ser decodificado.
O que nunca fez sentido, fará sentido,
O que era incompreensível, será compreendido.
- Mas, e se o mundo não tiver avesso?
Se o sabiá na palmeira não for um signo,
Mas apenas um sabiá na palmeira? Se a
Sequência de noites e dias não fizer sentido
E nessa Terra não houver nada, apenas terra?
- Mesmo se assim for, restará uma palavra
Despertada por lábios agonizantes,
Mensageira incansável que corre e corta
Campos interestelares, corta galáxias que giram,
E clama, reclama, grita.

Czeslaw Milosz
Poeta polonês - Nobel de Literatura

A Minha Situação - Gilmara Pires.

Me contraponho indefinidamente
É como estar em frente ao espelho
numa simétrica contradição
Os incontavéis eus em um só
resumem a infinitude da unidade
e definem as ambiguidades da individualidade
Olhando nos meus próprios olhos me encontro
Nego os formatos e reinvento as estrelas
Por sentir a doce condição do espaço imensurável

sábado, 9 de janeiro de 2010

Menino-Cobaia - Gilmara Pires.

O menino-cobaia se despede das emanações atlânticas
para se aprofundar na linguagem dos sapos
Seu amor catastrófico são beijos
e seu planos são bombas-relógios

Despedaça imaginações de reinos por onde passa
Com prudência desafia a lírica desrespeitosamente
Se se acredita fértil aduba a situação de-repente
E saboreia a imaginação para escutá-la mais de perto

Agora o menino-cobaia se reveste de porcelana
e pula nos abismos para provar a magia da vida
Des-en-terra toda a sua delicadeza dos músculos
Seus poderes são anfi-teatros em eterna construção
Para dar incessantemente ideias às próprias ideias

As plantas do menino-cobaia nascem nas estrelas
Assim cobaia resiste até os últimos segundos para
não dormir na sua insônia]
Por ser uma carta do universo em pessoa
Está destinado a tudo e ao mesmo tempo
E transita livre pelo infinito no seu barco-energético

Foram as estrelas ou os olhos do cobaia que se extiguiram?
A sua árvore mais velha é o canto dos passáros
Já não vê nem fala, apenas pensa vivendo
E é no com-o-cosmo que ele e os E.T.s dançam bêbados
de psicologia]

Simplicidade e Sabedoria - (Concerto para corpo e alma, pg. 09)

Pediram-me que escrevesse sobre simplicidade e sabedoria. Aceitei alegremente o convite sabendo que, para que tal pedido me tivesse sido feito, era necessário que eu fosse velho.

Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o sentido da simplicidade. Os jovens são aves que voam pela manhã: seus vôos são flechas em todas as direções. Seus olhos estão fascinados por 10.000 coisas. Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso. Estão sempre prontos a de novo voar. Seu mundo é o mundo da multiplicidade. Eles a amam porque, nas suas cabeças, a multiplicidade é um espaço de liberdade. Com os adultos acontece o contrário. Para eles a multiplicidade é um feitiço que os aprisionou, uma arapuca na qual caíram. Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar. Se, para os jovens, a multiplicidade tem o nome de liberdade, para os adultos a multiplicidade tem o nome de dever. Os adultos são pássaros presos nas gaiolas do dever. A cada manhã 10.000 coisas os aguardam com as suas ordens (para isso existem as agendas, lugar onde as 10.000 coisas escrevem as suas ordens!). Se não forem obedecidas haverá punições.

No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o vôo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu vôo pela manhã. Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam para casa, ninho. As aves, ao crepúsculo, são simples. Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só.

Jesus contava parábolas sobre a simplicidade. Falou sobre um homem que possuía muitas jóias, sem que nenhuma delas o fizesse feliz. Um dia, entretanto, descobriu uma jóia, única, maravilhosa, pela qual se apaixonou. Fez então a troca que lhe trouxe alegria: vendeu as muitas e comprou a única.

Na multiplicidade nos perdemos: ignoramos o nosso desejo. Movemo-nos fascinados pela sedução das 10.000 coisas. Acontece que, como diz o segundo poema do Tao-Te-Ching, “as 10.000 coisas aparecem e desaparecem sem cessar.“ O caminho da multiplicidade é um caminho sem descanso. Cada ponto de chegada é um ponto de partida. Cada reencontro é uma despedida. É um caminho onde não existe casa ou ninho. A última das tentações com que o Diabo tentou o Filho de Deus foi a tentação da multiplicidade: “Levou-o ainda o Diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e lhe disse: ‘Tudo isso te darei se prostrado me adorares.’“ Mas o que a multiplicidade faz é estilhaçar o coração. O coração que persegue o “muitos“ é um coração fragmentado, sem descanso. Palavras de Jesus: “De que vale ganhar o mundo inteiro e arruinar a vida?“ (Mateus 16.26).

O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da multiplicidade. Adverte o escritor sagrado: “Não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne“ (Eclesiastes 12.12). Não há fim para as coisas que podem ser conhecidas e sabidas. O mundo dos saberes é um mundo de somas sem fim. É um caminho sem descanso para a alma. Não há saber diante do qual o coração possa dizer: “Cheguei, finalmente, ao lar“. Saberes não são lar. São, na melhor das hipóteses, tijolos para se construir uma casa. Mas os tijolos, eles mesmos, nada sabem sobre a casa. Os tijolos pertencem à multiplicidade. A casa pertence à simplicidade: uma única coisa.

Diz o Tao-Te-Ching: “Na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui uma coisa.“

Diz T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?“

Diz Manoel de Barros: “Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha.“

Sabedoria é a arte de degustar. Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte: “A palavra grega que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphus, o homem do gosto mais apurado. “A sabedoria é, assim, a arte de degustar, distinguir, discernir. O homem do saberes, diante da multiplicidade, “precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.“ Mas o sábio está à procura das “coisas dignas de serem conhecidas“. Imagine um bufê: sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma infinidade de pratos. O homem dos saberes, fascinado pelos pratos, se atira sobre eles: quer comer tudo. O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo: “De toda essa multiplicidade, qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?“ E assim, depois de meditar, escolhe um...

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos para a alegria. Não só nós. Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de “Resta...“ Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha para trás e vê o que restou: o que valeu a pena. “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas...“ “Resta essa capacidade de ternura...“ “Resta esse antigo respeito pela noite...“ “Resta essa vontade de chorar diante da beleza...“. Vinícius vai, assim, contando as vivências que lhe deram alegria. Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás...“ Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem.

Ando pelas cavernas da minha memória. Há muitas coisas maravilhosas: cenários, lugares, alguns paradisíacos, outros estranhos e curiosos, viagens, eventos que marcaram o tempo da minha vida, encontros com pessoas notáveis. Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho, não me fazem nada. Não sinto vontade de chorar. Não sinto vontade de voltar.

Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada encontro que tenha brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho menino empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: “Papai, eu gosto muito de você!“; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu (chorei muito por causa dela, a Flora); menino andando à cavalo, antes do nascer do sol, em meio ao campo perfumado de capim gordura; um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: “Veja como estão agradecidas!“ Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas.

Diz Guimarães Rosa que “felicidade só em raros momentos de distração...“ Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: “É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai...“ Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples. (Concerto para corpo e alma, pg. 09.)

Canção Antiga - Sérgio Leandro.

A canção antiga que não veio
Nas horas tristes da tarde
Adormeceu em teus olhos

A canção antiga que amei
Será inquieta, entregue ao vento,
Uma bandeira a tremular na noite

Um dia, para além de qualquer porto ou pátria,
Para além de todos os muros, grades
E fronteiras, os povos cantarão um só hino.

A canção que tarda
Arderá outra vez
Nos braços da alvorada...

E não será saudade
Porque nossas mãos e as falanges cansadas do crepúsculo
Tecerão unidas outras manhãs.

04/02/2009.

Carta aos Camaradas - Sérgio Leandro.

Meus camaradas,
A tarde é breve,
Mas temos tempo suficiente para mais uma dose
de sonho,
Antes que caia a noite
E o silêncio preencha os cômodos da casa.
Meus camaradas,
A vida é dura e cruel,
Mas a poesia resiste, árvore frondosa e bela,
A poesia resiste apesar de todos os golpes e infortúnios.
Meus camaradas,
As taças com o brilho do vinho parecem corações,
Eu sei que a vida evapora como fumaça
De nossos cigarros
Mas a poesia insiste
A poesia constrói em meio a desmoronamentos.
Meus camaradas,
É alta madrugada
E eu vos digo: Bom Dia!

Poema do Último Abismo - Sérgio Leandro.

Eu plantei um sonho azul numa tarde chuvosa,
Escrevi o que era eterno
Na areia da praia
E o efêmero nas pedras que ignoram o tempo,
Permití que um demônio se deitasse comigo,
Amarguei um silêncio maior que o próprio homem
E caminhei vazio
Dentro da tarde cheia de sol.

Paulo Leminski.

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

O Cão Sem Plumas - João Cabral de Melo Neto.

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado

à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

Tecendo a Manhã - João Cabral de Melo Neto.


1


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Paulo Leminski.

para a liberdade e luta

me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão

Paulo Leminski.

parem
eu confesso
sou poeta

cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face

parem
eu confesso
sou poeta

só meu amor é meu deus

eu sou o seu profeta

Paulo Leminski.

a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão

Aço e Flor - Paulo Leminski.

Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.

Lápide 2 - Paulo Leminski.

epitáfio para a alma

aqui jaz um artista
mestre em disfarces

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena
dos seus disfarces

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Mãos Dadas - Carlos Drummond de Andrade.

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista na janela.

Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria,
o tempo presente,
os homens presentes,

a vida presente.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Cantiga de Malazarte - Murilo Mendes.

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Inventário - Augusto Frederico Schmidt.


Há um berço vazio, onde ninguém veio dormir,
Há uma viagem que jamais se realizou,
Paisagens que nunca foram vistas.
Há lembranças de sonhos partidos.
Uma casa construída pela imaginação
E cujas portas ninguém transpôs.
Há planos que foram abandonados
Para sempre.

Há algumas horas de paz e de silêncio,
Coroando sofrimentos e lágrimas invisíveis.

Há uma tristeza do que poderia ter sido,
De algumas palavras que pareciam
De compreensão e piedade,
E há o desgosto deste mundo.

Há algumas imagens da juventude
E a saudade de um fruto claro
Para sempre perdido.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Paul McCartney - Highway.










Os Quatro A's da Mudança.

QUER MUDAR???

Aprenda os quatro A's
da Mudança:

1º - Admitir.

2º - Aceitar a mudança.

3º - Adaptar-se.

4º - Agir.

P.S. - Agradeço ao meu amigo Jorge
por ter me presenteado
nos primeiros dias
deste ano de 2010
com esta PÉROLA!!!
Uma folha cai sobre o rio.
Os pássaros que ainda o habitam
São sobreviventes do caos,
das hecatombes, dos tsunamis,
da peste e da fome,
dos terremotos, dos furacões,
do efeito estufa
e de tantas outras coisas
que ainda nos sobrevirão,
pois estamos vivendo
O Apocalipse!

Carlos Maia
03/01/10.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello.

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.