"As estantes dos livros que não escrevemos assim como as dos livros que
não lemos, estendem-se pela escuridão do espaço remoto da biblioteca
universal. Estamos sempre no começo do começo da letra A.
(...) É verdade que às vezes o MUNDO DA PÁGINA passa para o nosso
inconsciente imaginaire -- nosso vocabulário cotidiano de imagens -
e então vagamos a esmo naquelas paisagens ficcionais, perdidos de
admiração, como Dom Quixote. Mas, na maior parte do tempo, pisamos
em terra firme. Sabemos que estamos lendo, mesmo quando suspendemos
a descrença; sabemos porque lemos mesmo quando não sabemos como,
mantendo em nossa mente, a um só tempo, o texto ilusivo e o ato de ler.
Lemos para descobrir o final, pelo prazer da história, não pelo prazer da
leitura em si. Lemos buscando, como rastreadores, esquecidos de onde
estamos. Lemos distraidamente, pulando páginas.
Lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, paixao, inveja,
anelo. Lemos em lufadas de súbito prazer, sem saber o que provocou esse prazer.
O que é no fim das contas essa emoção?
Que poder têm as grande obras de arte sobre minha vida para fazer
com que eu me sinta tão contente?
Não sabemos: lemos ignorantemente.
Lemos em movimentos longos, lentos, como que pairando no espaço,
sem peso. Lemos cheios de preconceitos, com malignidade.
Lemos generosamente, arranjando desculpas para o texto,
preenchendo lacunas, corrigindo erros. E às vezes, quando as estrelas são
favoráveis, lemos de um único fôlego, com um arrepio,
como se alguém ou algo tivesse 'caminhando sobre nosso túmulo',
como se uma memória tivesse subitamente sido resgatada de um lugar
no fundo de nós mesmos - o reconhecimento de algo que nunca soubemos
que estava lá, ou de algo que sentimos vagamente,
como um bruxuleio ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica ergue-se e
instala-se em nós sem que possamos ver o que é, deixando-nos mais
velhos e sábios. (...) Não escolhemos os livros em vez da vida lá fora.
Estamos tentando persistir contra as adversidades óbvias;
estamos afirmando um direito comum de perguntar;
estamos tentando encontrar uma vez mais - no reconhecimento surpreendente
que a leitura às vezes concede -- uma compreensão."
Alberto Manguel n'Uma História da Leitura (adaptado)
não lemos, estendem-se pela escuridão do espaço remoto da biblioteca
universal. Estamos sempre no começo do começo da letra A.
(...) É verdade que às vezes o MUNDO DA PÁGINA passa para o nosso
inconsciente imaginaire -- nosso vocabulário cotidiano de imagens -
e então vagamos a esmo naquelas paisagens ficcionais, perdidos de
admiração, como Dom Quixote. Mas, na maior parte do tempo, pisamos
em terra firme. Sabemos que estamos lendo, mesmo quando suspendemos
a descrença; sabemos porque lemos mesmo quando não sabemos como,
mantendo em nossa mente, a um só tempo, o texto ilusivo e o ato de ler.
Lemos para descobrir o final, pelo prazer da história, não pelo prazer da
leitura em si. Lemos buscando, como rastreadores, esquecidos de onde
estamos. Lemos distraidamente, pulando páginas.
Lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, paixao, inveja,
anelo. Lemos em lufadas de súbito prazer, sem saber o que provocou esse prazer.
O que é no fim das contas essa emoção?
Que poder têm as grande obras de arte sobre minha vida para fazer
com que eu me sinta tão contente?
Não sabemos: lemos ignorantemente.
Lemos em movimentos longos, lentos, como que pairando no espaço,
sem peso. Lemos cheios de preconceitos, com malignidade.
Lemos generosamente, arranjando desculpas para o texto,
preenchendo lacunas, corrigindo erros. E às vezes, quando as estrelas são
favoráveis, lemos de um único fôlego, com um arrepio,
como se alguém ou algo tivesse 'caminhando sobre nosso túmulo',
como se uma memória tivesse subitamente sido resgatada de um lugar
no fundo de nós mesmos - o reconhecimento de algo que nunca soubemos
que estava lá, ou de algo que sentimos vagamente,
como um bruxuleio ou uma sombra, cuja forma fantasmagórica ergue-se e
instala-se em nós sem que possamos ver o que é, deixando-nos mais
velhos e sábios. (...) Não escolhemos os livros em vez da vida lá fora.
Estamos tentando persistir contra as adversidades óbvias;
estamos afirmando um direito comum de perguntar;
estamos tentando encontrar uma vez mais - no reconhecimento surpreendente
que a leitura às vezes concede -- uma compreensão."
Alberto Manguel n'Uma História da Leitura (adaptado)
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