A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez
de sermos. Enquanto sentimos os males
e as injúrias de Hamlet, príncipe da
Dinamarca, não sentimos os nossos -
vis porque são nossos
e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes,
são formas elementares da arte, ou, antes,
de produzir o mesmo efeito que ela.
Mas amor, sono e drogas tem cada um
a sua desilusão. O amor farta ou desilude.
Do sono desperta-se, e, quando se dormiu,
não se viveu. As drogas pagam-se com a
ruína de aquele mesmo físico
que serviram estimular.
Mas na arte não há desilusão porque
a ilusão foi admitida desde o princípio.
Da arte não há despertar, porque nela não
dormimos, embora sonhássemos.
Na arte não há tributo ou multa
que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo
modo não é nosso, não temos nós que
pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia
sem que seja nosso - o rasto da passagem,
o sorriso dado a outrem, o poente, o poema,
o universo objetivo.
Possuir é perder.
Sentir sem possuir é guardar,
porque é extrair de uma coisa
a sua essência.
Fernando Pessoa
pg. 264
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