terça-feira, 20 de julho de 2010

Fotografia Aérea - Ferreira Gullar


Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados lá embaixo sob
as folhas
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente
do capim

junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro na usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou

II


eu devo ter ouvido no meu quarto
um barulho cortar outros barulhos
no alarido da época
rolando
por cima do telhado
eu
devo ter ouvido
(sem ouvir)
o ronco do motor enquanto lia
e ouvia
a conversa da família na varanda
dentro daquela tarde
que era clara
e para sempre perdida
que era clara
e para sempre
em meu corpo
a clamar
(entre zunidos
de serras entre gritos
na rua
entre latidos
de cães
no balcão da quitanda
no açúcar já-noite das laranjas
no sol fechado
e podre
àquela hora
dos legumes que ficaram sem vender
no sistema de cheiros e negócios
do nosso Mercado Velho
- o ronco do avião)

III

eu devo ter ouvido
seu barulho atolou-se no tijuco
da Camboa na febre
do Alagado resvalou
nas platibandas sujas
nas paredes de louça
penetrou nos quartos entre redes
fedendo a gente
entre retratos
nos espelhos
onde a tarde dançava iluminada
Seu barulho
era também a tarde (um avião) que passava
ali
como eu
passava à margem do Bacanga
em São Luís do Maranhão
no norte
do Brasil
sob as nuvens

IV

eu devo ter ouvido
ou mesmo visto
o avião como um pássaro
branco
romper o céu
veloz voando sobre as cores da ilha
num relance passar
no ângulo da janela
como um fato qualquer
eu devo ter ouvido esse avião
que às três e dez de uma tarde
há trinta anos
fotografou nossa cidade

V

meu rosto agora
sobrevoa
sem barulho
essa fotografia aérea
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar

Um comentário:

Arsenio disse...

Carlos,

Escrevi lá no blog do nosso Domingos e faço questão de postar aqui:

Gullar é um Nilton Santos.

Tem vastíssima cultura poética, manja escultura e pintura, e tem uma formação política que não foi tirada dos livros, ou do lenga-lenga acadêmico ou mesmo de orelha de livro.

E ele nunca mendigou cargo comissionado em rodinhas babacas de pseudos esquerdistas.

Ele era um cara - efetivamente - de esquerda.

No exílio ou depois dele, viu a família literalmente desintegrar-se. Perdeu um filho. O outro sofre hoje os dissabores de uma vida com problema psiquiátricos.
A esposa Tereza Aragão, também militante, morreu jovem, em 1993.

Então, ele não é dessas figuras falsas, que com o copo de johnny walker na mão apregoam uma melhor distribuição de renda.

Foi o poeta de toda uma geração, a partir da publicação do seu primeiro livro "A Luta Corporal."
Um cara que pertenceu à avant-gard, e foi da arte útil ao ceticismo humanista sem perder o prumo.

Poucos poetas tem a vivência e o currículo cultural dele.

Em seu ínicio experimental, escreveu sobre "a inutilidade do canto"; definiu o galo como um "mero complemento de auroras" e o ser humano como "um ser grave, que não canta senão para morrer".

Mas tem mais.

De se reconhecer que parte de sua poesia-panfleto está datada.

Digo parte, porque mesmo em seus momentos mais secundários, ele fez inúmeros golaços e escreveu que "a crase não foi feita para humilhar ninguém". No inicio dos anos de chumbo, avisou que "do salário injusto/ da punição injusta/ da humilhação/da tortura e do terro/retiramos algo/ e com ele construímos um artefato/ um poema, uma bandeira".

Após ter vivido quase tudo ou tudo, no fim dos anos 80, Gullar admitiu que o principal objetivo do artista é produzir boa arte.

E assim ele seguiu e segue.
Produzindo poemas que resistirão ao tempo, o famoso senhor da razão.

Como este que segue, com o abraço do amigo Arsenio:

"O AÇÚCAR

O branco açúcar que adoçará meu café
Nesta manhã de Ipanema
Não foi produzido por mim
Nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
E afável ao paladar
Como beijo de moça, água
Na pele, flor
Que se dissolve na boca. Mas este açúcar
Não foi feito por mim.

Este açúcar veio
Da mercearia da esquina e
Tampouco o fez o Oliveira,
Dono da mercearia.
Este açúcar veio
De uma usina de açúcar em Pernambuco
Ou no Estado do Rio
E tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
E veio dos canaviais extensos
Que não nascem por acaso
No regaço do vale.

Em lugares distantes,
Onde não há hospital,
Nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
Aos 27 anos
Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema."

Ferreira Gullar