“O senhor vai me entender. Tenho filhos e estou a procura de uma escola que seja boa para eles...”
Com essas palavras a jovem senhora se explicou ao senhor à sua frente, assentado numa poltrona, atrás de uma escrivaninha. Era o diretor da escola. Ele sorriu, levantou-se e fez um gesto com a mão... E foi assim que se iniciou a visita. Ele, diretor antigo, caminhava à frente, explicando as coisas da escola, da educação, da vida. Ele sabia sobre o que estava falando. Ela, jovem, mãe e dona de casa, ia seguindo, observando, ouvindo. Ele mostrava com orgulho as salas de aula, os laboratórios, as quadras esportivas, a biblioteca... Terminada a visita, de volta ao gabinete do diretor, a conversa aproximou-se do desfecho. O diretor estava confiante. Era difícil para uma mãe, uma simples dona de casa, resistir à autoridade e clareza dos seus argumentos. Foi então que a mãe tomou a iniciativa:
“Como eu lhe disse, estou à procura de uma escola que seja boa para os meus filhos. E há algumas coisas a mais que gostaria de saber. Eu queria saber se essa escola é rigorosa, se ela aperta os seus alunos...” O diretor a tranqüilizou. “Quanto a isso a senhora pode estar descansada. Orientamos nossos professores no sentido de apertar ao máximo os alunos. A senhora compreende: vivemos num mundo competitivo, o vestibular está à espera e somente os mais aptos sobreviverão...” A mãe continuou: “Há uma outra coisa que me preocupa. Os alunos frequentam a escola por um período apenas, ou manhã, ou tarde. Sobra um tempo vazio... E eu desejo saber se a escola planeja esse tempo também, se é prática da escola dar tarefas para serem realizadas em casa, tarefas que encham esse tempo...” “Mas é claro. O nosso planejamento pedagógico se orienta no sentido de fazer com que os alunos estejam o tempo todo ocupados com as coisas da escola. No mundo em que vivemos não podemos nos dar ao luxo de tempo ocioso... O vestibular é cruel!” E, com um sorriso, acrescentou: “Eu sempre digo aos alunos, brincando: ‘Enquanto você está vadiando há um japonês estudando...’” A jovem mãe se levantou e, sorrindo, se explicou: “O senhor sabe... Como lhe disse, estou à procura de uma escola que seja boa para os meus filhos. A coisa que mais desejo para meus filhos é que eles sejam felizes. Portanto, uma escola boa para os meus filhos terá de ser uma escola em que eles se sintam felizes. Terá de ser uma escola em que eles aprenderão que aprender dá prazer. Uma escola em que os livros sejam um motivo de felicidade e não uma obrigação. Mas o senhor me disse que seus professores são orientados no sentido de ‘apertar’ as crianças. Agora, tomando por mim, eu não me sentiria feliz se vivesse sendo ‘apertada’. Aperto dá stress... Além do que, eu acho que é importante que as crianças tenham tempo livre para fazer o que quiserem: brincar, construir coisas, excursionar, fazer as infinitas coisas que não estão previstas nos programas escolares... Eu tenho medo de que, se meus filhos viessem a frequentar a sua escola, eles iriam associar aprendizagem com sofrimento e acabariam por ter raiva de aprender...” E ainda sorrindo, despediu-se do diretor e saiu rumo a uma outra escola...
Literatura se faz com uma mistura de realidade e fantasia. Isso que relatei é literatura: não foi exatamente assim que aconteceu. Mas aconteceu! Essa mãe peregrinou de escola em escola à procura da escola na qual os seus filhos se sentiriam felizes. Depois de muito procurar, achou. Quem quiser saber os detalhes é fácil. É só procurar a Eliana França Leme.
Quem é ela? Eu acho que as vocações não podem ser aprendidas. Só podem ser despertadas. Ninguém aprende a ser poeta. Ninguém aprende a ser compositor. Ninguém aprende a ser psicanalista. As vocações nascem com a pessoa, como sementes. Claro. Há os cursos, os saberes. Mas os cursos e saberes são apenas a terra onde a dita semente pode germinar. Penso o mesmo dos educadores. Não há escolas onde se produzam educadores. Os educadores nascem educadores. É o caso da Eliana.
O que faz um educador é o amor pelas crianças; e o amor pelas crianças que teimam em viver mesmo naqueles que já cresceram. O amor é esperto: ele sempre acha um jeito de chegar até o lugar onde mora o objeto amado. Pois não foi isso que fez a Rapunzel? Ela, presa na torre. O seu amor, lá em baixo, longe... Aí o seu desejo do abraço fez seus cabelos crescerem, crescerem muito, até chegar ao chão. E os seus cabelos se transformaram, então, numa escada pela qual o seu Príncipe subiu até ela. Um psicanalista imaginoso diria logo: cabelos são fios que saem da cabeça. Ora, os fios que nascem da cabeça são os pensamentos. O amor faz nascer os pensamentos que levam até o objeto amado. É assim que acontece com os verdadeiros educadores: eles descobrem um jeito de chegar até as crianças.
Pois foi o que a Eliana fez. Seus filhos cresceram e bateram asas. Mas ela continuou a amar as crianças. E da combinação de amor pelas crianças e inteligência cresceram, na cabeça dela, os fios que construíram o projeto educacional: “Quero-quero”. “Quero-quero” é o nome de um pássaro de pernas compridas (Vanellus chilensis lampronotus êta nome difícil!). Pode ser encontrado andando pelos campos. O nome está dizendo: quero, quero. Querer é desejar. Todos somos movidos pelo desejo. As crianças aprendem movidas pelo desejo. Essa é a intuição fundamental da Eliana: ela percebeu que a alma das crianças é habitada por sonhos, o maior deles sendo o desejo de ser amado e de construir o seu próprio futuro. Pedagogia do Desejo: é desse “quero-quero” que todos repetimos que brota o desejo de conhecer.
E foi assim que ela e um grupo de amigos e voluntários começaram a construir um espaço para as crianças que vivem na pobreza e nas margens da sociedade. Ela descreve o seu projeto com a palavra “maternagem”. Quem usa a mesma palavra é o mestre Roland Barthes, dirigindo-se aos eruditos intelectuais franceses que assistiram, perplexos, à sua aula inaugural como professor do Collège de France. Ele sabia que mesmo os marmanjos que se assentariam nas suas classes não passavam de crianças. E ele descreve o seu projeto de maternagem como um espaço em que “as idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz.”
É a criança que dá o programa. É ela que pega a pedrinha e o fiozinho de lã. A pedrinha e o fiozinho de lã são expressões do seu “quero-quero”. O centro calmo, a mãe, sorri e brinca. O seu sorriso diz à criança que ela pode ir, vir, explorar, se interessar pelo que quiser. Não se trata de um projeto para transformar as crianças em profissionais. As crianças vão para lá no período em que estão fora da escola. Para quê? Para serem elas mesmas. Para saber que elas não são objetos passivos que devem aprender aquilo que os adultos, mais fortes, lhes impõem: aquela pedagogia que a mãe chamada Paulo Freire chamou de “pedagogia bancária”: as crianças como cofres onde os adultos depositam seus capitais de saber, a fim de poder sacar, no futuro...
A ciência, frequentemente, produz conclusões equivocadas. Piaget, analisando o desenvolvimento do aparato cognitivo das crianças, percebeu que ele passa por fases. Da mesma forma como uma planta passa por fases. Não se pode esperar que uma planta dê frutos quando ela ainda não está madura para isso. Essa constatação, que é científica, produziu uma conclusão pedagógica estranha: se as capacidades de aprender das crianças passam por fases, então as crianças devem ser agrupadas segundo a fase em que se encontram. Assim, o ambiente de aprendizagem de uma criança de 5 anos deve ser distinto e separado do ambiente de aprendizagem de uma criança de 9. As crianças aprendem, separadas em pequenos currais... Mas quando observamos um jardim Piaget, ao pensar sobre a aprendizagem, levou muito a sério o ambiente vital vemos que não é assim que a vida acontece: plantas, nas mais diversas fases de crescimento, convivem no mesmo espaço: árvores imensas ao lado de sementes recém brotadas, arbustos florescendo ao lado de plantas que perderam as folhas. É assim que é a vida. É nessa diversidade que se encontra a beleza do jardim. Jardim não é canteiro de mudas... Parte da aprendizagem, talvez a parte mais rica da experiência humana, é a convivência na diversidade: crianças, nas mais diversas fases de desenvolvimento cognitivo, habitando um mesmo espaço, aprendendo num mesmo espaço, ajudando-se umas às outras. Jardim... Inviável? É a falta de compreensão dessa dimensão humana que cria os mecanismos de segregação: as escolas se transformam em canteiros de mudas, todas iguais, separados por fase de crescimento. E se, no meio das mudas iguais aparece uma planta diferente, o jardineiro a arranca e a joga no lixo... Não seria bonito e verdadeiro se as escolas, ao invés de se parecerem com linhas de montagem, se parecessem com jardins? Se você quiser saber mais sobre o projeto “Quero-quero”, faça uma visita. Ele funciona no “Parque Ecológico”, numa das casas antigas, ao lado do Lago das Ninféias. Ou você pode falar diretamente com a Eliana: telefone 32552581, à tarde.
(Correio Popular, 08/09/2002)
Fonte: http://www.rubemalves.com.br/queroquero.htm
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